Sobre falta de dedos


Faz algum tempo que, depois de um puta show que fui e dei carona a dois amigos no carro do meu pai, terminou em dor de cabeça. Ao seguirmos alguns metros para deixar a primeira pessoa, esta me abre a porta do carro (a menos de um metro da calçada) sem olhar, quando uma moto passa por esse mesmo espaço mínimo. O que se procedeu foi o dedo da menina, que estava no carona da moto, esmagado.
Eu e meu pai a levamos a um hospital perto, no meio de gemidos dignos de uma cadela no cio e uma velocidade suficiente para posteriores multas de trânsito.
A ficha foi preenchida, a mulher atendida e o motoqueiro e o namorado da “desdedada” chegaram. Fomos embora deixando telefones para algum problema que poderia aparecer depois.
Eis que resolve nos ligar, uma semana depois, a menina sem dedo falando que já havia gastado duzentos reais em medicamentos até o dado momento e exigindo o depósito de alguma quantia para ajudá-la a pagar os remédios.
Meu pai sempre teve um coração de ouro e não poupou esforços para ajudar financeiramente a sem dedo, mesmo não concordando com a atitude da mesma.
Peguei-me pensando nisso hoje e me coloquei na situação dele, imaginando qual seria (e, na verdade, qual é) a minha reação quanto a tudo isso.
Primeiro que lugar de moto não é entre os carros, teoricamente a moto tem que se comportar como um: não pode andar na contramão nem em velocidades superiores a carros, além de ter que ocupar um lugar no transito como se fosse, realmente, um veículo para cinco pessoas. Ok, ninguém respeita isso e é essencial que olhemos para trás ao abrir a porta de um carro, mas isso não significa que, se é porque todo mundo faz, está certo.
Segundo que a menina sem dedo estava absolutamente sem proteção alguma. Nem a porra de um capacete ela tinha na cabeça. Tudo bem, ela pode ser ultra esforçada e fazer faculdade enquanto trabalha a noite, mas, sinceramente, isso é problema dela. Se ela se acha coitada por estar trabalhando, estudando e ser pobre, gostaria que ela sofresse trabalho escravo para ver se ela acha a vidinha dela tão horrível assim.
Terceiro que é muitíssimo corajoso da parte dela ter a cara de pau de pedir ajuda para pagar os medicamentos. O carro não estava no lugar errado, pelo contrário, estava ao lado da calçada, sem espaço para que moto alguma passasse por lá (tanto que a moto, antes do acidente, tinha feito marcas na parte da trás do carro de tão apertado que estava o espaço para passar) e não é obrigação de ninguém de, estando do lado correto, olhar para trás para abrir a porra da porta do carro para descer. Se fosse assim, eu diria: “Minha cara, se você quer ajuda para pagar os seus remédios, eu quero ajuda para pagar as multas que você me fez tomar por causa do seu ataque de vadia histérica sem dedo e pela lavagem que eu tive que fazer na porra do meu carro por causa do chafariz de sangue que jorrou até o teto”.
Logo após o acidente, eu fiquei com pena da garota. Ela é uma coitada, realmente, e se esforça para levar a vida dela. O que me impressiona, no entanto, é a discrepância que existe na educação que, por exemplo, eu e ela temos. Eu, no lugar dela, nunca ligaria para a pessoa no intuito de pedir dinheiro, até porque está claro de que os errados foram o motoqueiro imbecil que estava com ela e a falta de senso de segurança da amputada. Me assusta, simplesmente, essa posição que as pessoas se colocam de mártir e vítimas querendo se aproveitar dos outros em qualquer situação. Nós podíamos muito bem ter arrancado com o carro e deixado o motoboy e a menina sem dedo irem para o hospital e passarem o resto da vida reclamando do quão a humanidade é mesquinha e suja, mas é exatamente pelo fato de sermos pessoas civilizadas que incomodamos os outros. É assustador alguém que se importa com um estranho, o leva para o hospital e dá seu número de telefone para problemas que podem vir a surgir. As pessoas estão tão mal acostumadas com bom senso e generosidade que, quando lhes ocorre, o pensamento principal é sugar tudo o que se pode dessa respectiva pessoa.
A lição que aprendi com isso tudo é que gente como o meu pai está em extinção e que eu perco cada vez mais o respeito pelos seres humanos.

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