Fragmento II


Abelardo não tinha mais olhos. Estava cego.
Abrir as pálpebras era um movimento longo, doentio, escuro.
Afinal, já eram quatro horas da manhã. Quatro horas da manhã de um domingo e ele, no seu quarto escuro, com Maria aos braços.
Ela, com a cabeça deitada em seu peito, sufocando-o. Aliás era exatamente por isso que havia acordado: o ar.
O ar que levitava sob seus ombros com doçura. Maria não era pesada, era leve, por mais dolorosa que fosse.
Tirou-lhe os cabelos do rosto, jogou sua cabeça com delicadeza para o lado e saiu da cama. Cego.
Demorou alguns segundos para voltar a si. Havia misturado tanta coisa no organismo que nem sabia mais dizer o que era o quê. Chegou na cozinha e a luz dilatava suas pequenas pupilas. Cego.
- Acordou?
Ah! Fernando! Fernando não havia ido embora, percebeu com alegria. Mas obviamente não transpareceu nenhuma emoção além do incômodo da luz nos olhos.
- Sim, acordei. Pensei que você iria para casa. – tossiu.
- Prometi que levaria Maria. Como ela apagou, achei melhor ficar por aqui. Espero que não se incomode.
“Eu?! Me incomodar?”, pensou. Era absurdamente claro que não se incomodaria. Aliás, durante três anos não havia se incomodado, por que agora sim?
Passou a mão nos cabelos castanhos, acariciou a própria nuca e olhou para o outro com interesse.
- Você não vai dormir, não?
- Eu tava cochilando no sofá.
- Não, vem dormir conosco. A cama é grande o suficiente.
- Eu sei.
Abelardo teve uma vontade absurda de abraçá-lo. O máximo que conseguiu fazer foi tirar o copo d’água das mãos do outro e levá-lo, tocando na ponta de seus dedos (toque que este considerava o mais obsceno de todos) levou-o até o quarto.
Fernando não tinha muito no que pensar. Mas sua cabeça girava inconstante. Avistou Maria, jogada entre os lençóis e teve vontade de beijar seus olhinhos cansados. Debruçou sob ela e o fez.
Já Abel resolveu que iria acender uma vela, verde.
- Dizem que verde é a cor da esperança.
- Esperança – disse, terminando de beijar os olhos da menina.
Menina sim. Era uma menina. Tinha quinze anos. Parecia ter uns vinte e um, passava uns batons vermelhos cor de sangue. Fernando adorava seus lábios vermelhos, adorava ficar com a boca marcada depois de beijá-la com paixão. Já Abelardo odiava. Achava Maria tão bonita que não precisava de maquiagem para esconder absolutamente nada. Seus olhos, boca, nariz, orelhas e até poros eram lindos!
Na verdade da primeira vez que a viu, pensou que fosse irmã de Fernando. Os dois sempre tão ligados, tão apaixonados. Assim que trocou as primeiras dúzias de palavras com este disse “Veado. É gay, tem que ser”. “Mas eles parecem tão ligados..”, pensou. “Não, é hétero com algum trauma de infância... só pode ser”.
Foi até engraçado relembrar o tempo que se conheceram. Sorriu de canto de boca, bamboleou, andou três passos e caiu ao lado do outro.
- Do que você estava rindo?
- De você.
Fernando passou a mão direita por baixo do pescoço de Maria e o esquerdo pelo peito de Abelardo. Pressionou a mão sob suas costelas. Leveza.
- A cabeça de Maria fazia exatamente essa mesma pressão – lembrou.
- Dói?
- Não, é bom.
Deu-lhe um beijo no nariz e um sopro forte, apagando a vela. Sentiu um pouco do suor de Abel, entre a penugem do peito. Beijou-lhe o queixo e virou a cabeça em frente a sua, deixando a respiração bater em seu rosto.
Permaneceram assim até descobrirem a liberdade.

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