Fragmento I

Serpentes circulando por meus veios sanguineos. Tudo parece simplesmente rodar vagarosamente por sua mente cheia de ar. Parece que você me deixa nesse estado cabuloso de espírito, como se seus olhos fossem a porta do inferno.

Nesse mesmo dia pequenas falhas foram percebidas por ele no topo da cabeça, como se fossem simples esperanças - em forma de fios de cabelo - que estivessem caindo sob seus ombros, sem poder colocá-los no lugar. Seu hálito cheirava a tabaco roubado e sua alma a verniz. Verniz sim, para protegê-la de pequenas interferências cegas e sem compaixão. Ele ouvia um disco antigo dos Rolling Stones, o mesmo que fala de escravos e amor - e não sentia nada além de tontura. Suas mãos, paradas e desfeitas de um contínuo movimento obsceno. A cada vez que tragava o cigarro com força, isso lhe dava um prazer perdido, incontestável, obsceno.
Ela, pelo contrário, se debruçava contra suas pernas, jogadas no sofá vermelho. Tudo nele simplesmente a encantava - até o simples tragar do cigarro - e fazia disto seus gestos obscenos. Tocou em seus braços com ardor e disse:
- Pára de escutar essa merda.
Ele ofendeu-se e se pôs ereto, vagarosamente, para responder.
- Você está realmente falando mal dos Stones?
Ele se contorcionou num movimento de negação. Na verdade ela gostava dos Stones. Estava apenas censurando-o para acabar com o silêncio mortal entre ambos. Não que silêncio a incomodasse, só queria ver seus lábios abrindo e direcionando-se somente a ela. Ah!, não havia nada demais em seus lábios. Eram finos e umedecidos, com o gosto indecifrável de cigarro. E como ela suportava aquelas lábios. Sentia-se quase uma criança, descobrindo várias vezes exatamente a mesma coisa. Mas como seus gostos, sabores e gestos labiais mudavam com o tempo. Era simplesmente absurdo dizer que toda vez que ela o beijava, ou via-o falar, ou simplesmente encostava em seus lábios era de homens diferentes. Completamente diferentes. Nunca dissera-o isso.
- Você devia ser menos calada. - E agora ele reparava em seus olhos fixos em seus lábios. Lábios que ele havia herdado da mãe: finos, molhados e com cheiro de tabaco. Ele recostou-se no sofá, jogando a cabeça no ombro do mesmo, olhando para o teto, alienado. "Chega de vinho", pensou. E de repente subiu-lhe um enjôo. Olhou novamente para ela, dessa vez de rabo de olho. Percebeu que agora ela olhava para um quadro na parede, que ele mesmo havia feito, ironicamente para outra mulher. Censurou-a com o olhar e o enjôo passou de repente.

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